quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A menina que roubava livros .

"Na última vez que a vi, estava vermelho. O céu parecia uma sopa, borbulhando e se mexendo. Queimado em alguns lugares. Havia migalhas pretas e pimenta riscando a vermelhidão.

Antes, houvera crianças pulando amarelinha ali, na rua que lembrava páginas manchadas de gordura. Quando cheguei, ainda era possível ouvir seu eco. Os pés batendo no chão. As vozes infantis rindo, e os sorrisos feito sal, mas se estragando depressa. Depois, bombas.

Dessa vez, foi tudo tarde demais.

As sirenes. Os gritos malucos no rádio. Tudo muito tarde.

Em minutos, montes de concreto e terra se superpuseram e empilharam. As ruas eram veias rompidas. O sangue escorreu até secar no chão e os cadáveres ficaram presos ali, feito madeira boiando depois da enxurrada.

Estavam colados no chão, até o último deles.

Um pacote de almas.

Seria o destino?

O azar?

Foi isso que os grudou assim?

É claro que não.

Não sejamos burros.

Provavelmente, teve mais a ver com as bombas atiradas, lançadas por seres humanos escondidos nas nuvens.

Sim, agora o céu era de um vermelho devastador, desses feitos em casa. A cidadezinha alemã fora rasgada com violência, mais uma vez. Flocos de neve feitos de cinzas caíam tão encantadoramente, que a gente ficava tentada a espichar a língua para pegá-los, prová-los. Só que eles queimariam os lábios. Cozinhariam a boca.

Claramente, eu vi.

Estava prestes a ir embora, quando a encontrei ajoelhada.

Uma cordilheira de escombros fora escrita, desenhada, erigida à sua volta. Ela estava agarrada a um livro.

Afora todo o resto, a menina que roubava livros queria desesperadamente voltar para o porão, escrever ou ler sua história até o fim, uma última vez.

Olhando para trás, vejo tudo muito óbvio em seu rosto. Ela morria de saudade daquilo — da segurança, da familiaridade —, mas não conseguiu se mexer. Além disso, o porão já nem existia. Era parte da paisagem mutilada.

Por favor, mais uma vez, peço-lhe que acredite em mim.

Tive vontade de parar. Agachar-me.

Tive vontade de dizer:

- Sinto muito, menina.

Mas isso não é permitido.

Não me agachei. Não falei.

Em vez disso, observei-a por algum tempo.

Quando ela conseguiu se mexer, acompanhei-a.

Ela deixou cair o livro.

Ajoelhou-se.

A roubadora de livros uivou."